Sentou-se na cama e ficou a contar as vezes em que dissera "adeus" ou fora vítima de uma dessas palavras de despedida. "O mais curioso é quando reencontramos a pessoa um tempo depois.", pensou. E esticou as pernas, vestiu a calça, o sorriso e o casaco. Olhou pela janela e viu a neve. "Neve é bom, sempre bom.", disse em voz baixa. Inspirou o ar demoradamente e, então, voltou-se para o lance de escadas que, em breve, desceria com passos agudos.
Abriu a porta com certa rispidez e incomodou-se ao perceber que a neve que viu da janela não passou de propaganda enganosa aos seus olhos. Tirou do bolso uma touca feia e colocou sobre os cabelos amanhecidos. Caminhou até uma cafeteria, onde se acomodou e fez seu pedido. Sozinha na mesa, manteve sua atenção em uma outra mulher, também sozinha, que digitava ininterruptamente qualquer coisa no notebook. "J.K. Rowling escreveu Harry Potter em uma cafeteria.", pensou com certa felicidade. Depois de olhar com certa fascinação para a possível escritora da outra mesa, desfez seu sentimento infantil: "deve estar trabalhando em mais algum relatório chato.". E tomou seu café em total silêncio - nada ecoava em seu interior.
Folheou um jornal local de dois dias atrás, em que fora apresentada uma extensa matéria sobre a morte misteriosa de um ator de filmes de baixo orçamento. Nunca ouvira falar no seu nome, nem conhecia seu rosto, mas naquele momento sentiu falta dele. E era assim constantemente: receber a notícia de que alguém morreu constituía um processo lento, de difícil digestão. Talvez fosse sintoma de sua mania de efemeridade, o que não deixava de aparentar insanidade. Pegou o celular com certa pressa e ligou para o amigo-de-sempre. "J., pega o jornal de terça. Vê se você conhece esse cara...", falou sem tirar os olhos da foto do ator.
Duas horas depois, estavam os dois diante de um túmulo de um outro desconhecido.
- Acho que eu não conseguiria escrever um obituário.
- É, você não conseguiria mesmo. Quer dizer, não consigo te ver fazendo isso. Nem um pouco.
- E essas pessoas que fazem esse trabalho... elas se importam?
- Com o quê?
- Sei lá, olha a quantidade de gente que morre. Eu acho que ficaria deprimida de lidar com isso todo o tempo.
- Mas é só um trabalho... escrever e tal.
- E quem trabalha diretamente com isso? Enche as covas de areia, vende caixões, sei lá..?
- É só um trabalho.
Pararam de falar quando um inseto verde pousou sobre a lápide, cobrindo uma letra do nome da pessoa morta de forma a mostrar uma palavra com sentido completamente pejurativo.
- É só um trabalho... e, além do mais, ninguém te obriga a ler o obituário. Você faz isso porque quer.
- Mas alguém tem que se importar!
- Mas as pessoas se importam! Quem deveria se importar se importa. Você não pode querer sentir falta de todas as pessoas do planeta.
- Por que não?
- Porque não.
- Por quê?
- N., saudade foi feita para se sentir daquilo que se teve, que se viveu... Isso que você sente - eu não sei o que é, mas não é saudade.
- Eu não disse que é saudade, eu disse que eu me importo.
- Que seja. Mas as pessoas morrem. É isso que elas fazem. Algumas vivem mais, outras vivem melhor... mas o que importa mesmo é que elas vão embora uma hora.
Ficaram apreensivos quando um outro inseto, da mesma espécie, apareceu de repente e se encontrou com o primeiro, de forma que pareceram estar copulando.
- Mas eu acho que existe uma certa mágica nisso...
J. olhou dos insetos para N., em dúvida sobre o real tema que a conversa tratava.
- Sabe, mágica quando as pessoas morrem. É uma mágica triste, mas é algo meio natalino: como se houvesse mais perdão, mais solidariedade e as pessoas se voltassem mais para coisas mais importantes do que carros e dietas.
- Todas as vezes em que alguém morreu na minha família houve briga por causa da herança.
Desistiram de observar os insetos e continuaram a dar passos lentos sobre a grama molhada.
- Tenho medo, eu acho, de ler por aí ou saber de forma ainda mais grotesca que alguém querido pra mim morreu.
- Mas isso não acontece assim... Quer dizer, acontece. Mas você geralmente fica sabendo com alguém te ligando aos prantos. A não ser que seja um acidente de carro.
- Tá, mas existem aquelas pessoas com quem a gente briga ou, enfim, pessoas de quem a gente se afastou, mas que foram importantes e a gente iria no velório delas, mas não seria convidado por ninguém.
- Mas aí é querer comprar briga com os amigos, a família do morto...
- Não, claro que não. Se a gente se importa de verdade, eu acho legal. Acho bonito, acho sincero. Chato é quando tem gente no velório que nem sabe porque está lá, ou quem era de fato o cara que morreu...
- Engraçado você falar isso. Achei que a gente visitasse túmulos de pessoas anônimas, mas agora sei que você conhece toda essa gente e que essas flores são da cor favorita de... desse sujeito aqui, "Thomas J. B.".
- Thomas?
- Ah, céus! Eu conheci esse cara.
- Que droga.
- É, que droga.
N. jogou um montinho de flores azuis que trazia no colo sobre as pedras que enfeitavam a lápide.
- Que droga, N., que droga! Sabe, eu odeio fazer esses passeios. A gente sempre fica deprimido.
- Agora imagina se você escrevesse obituários.
[...]
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