quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Caixão e cinzas.

Eu acabei de chegar de uma dessas cerimônias que as pessoas fazem quando morre algum conhecido delas. Foi estranho, mas foi bom. E eu sequer tinha idéia de quem era o falecido. Não era muito velho, mas devia ser solteiro - quem sabe viúvo? -, pois não vi nenhuma figura feminina que se comportasse como uma amante dele. Só compareceram parentes e amigos engravatados. Dezessete pessoas, para ser mais precisa. Entre elas, duas crianças que não pararam de correr um segundo. A mãe delas, coitada, nem prestava atenção nisso, uma vez que devia ter realmente uma forte ligação com o morto - e o cara ao seu lado, que eu julguei ser seu marido.

Eu cortei o caminho por aquela rua arborizada, pensando que talvez fosse bom dar um basta no cigarro, respirar algo mais puro. Não fui muito feliz, já que no enterro tinham uns homens que não deixaram o vício de lado nem para expressar tristeza. Mas eu não sou ninguém para falar deles. Até foram legais comigo, me cumprimentando como se eu fosse a filha ou, quem sabe, a namorada do sujeito do caixão. Eu achei meio bizarro aquilo tudo. A gente que não tem nada a ver com a história sofre um monte ao ver os rostos sem cores nesses rituais silenciosos. Quer dizer, tinha barulho. E aquela música de partir o coração. Mas eu juro que nem ouvi nada - não com a mente.

O dia foi uma merda, como vem sendo há muito tempo. E se tem uma coisa que eu não gosto de verdade é não conseguir colocar para fora a minha angústia. É como se, nessa hora, todos conseguissem - menos eu, que mais preciso. Eu precisava chorar. Uma lagrimazinha que fosse, umas reles lágrima. E eu precisei da dor alheia para sentir a minha. Quer dizer, é meio dramático falar disso, mas é realmente imbecil perceber que você deseja uma realidade às vezes pior para se mostrar digno de admiração. É claro que eu não achei que todos os presentes estavam lá realmente por amor e respeito ao morto. Umas cinco, seis pessoas deviam estar realmente à beira de um colapso nervoso, é verdade, mas falar que todo mundo se importou seria ocultar alguns fatos. A verdade parcial esconde a necessidade, isso é uma regra. Tipo o marido que estava fazendo companhia à esposa. É incoerente eu julgar um alguém pelo coimportamento aparente, mas estava na cara que o que levou o cara lá foi a esposa. E só.

Eu caminhei devagar por entre a roda de pessoas, observando tudo com a curiosidade de um gato. E me fez bem olhar para o semblante de um ser inanimado. Eu sei lá o que houve com ele, era jovem para morrer. Eu não estava diretamente afetada, uma vez que eu não tinha relação de afeto nenhum com ele - pensando bem, não tenho isso com ninguém quase. Fiquei imaginando o que o falecido pensava de mim naquela hora, chegando de intrusa numa cerimônia restrita e, bem, realmente inadequada para estranhos. Ele devia ter pena de mim. Eu sempre pensei que os mortos soubessem bem mais do que os vivos, sabe. Eles morrem e ficam transparentes, andando por aí e atravessando paredes, com a velocidade da luz. Podem descobrir o que quiserem. E talvez até saibam ler pensamentos. Deve ser bom.

Cheguei aqui com os pés embarrados. O porteiro me olhou torto e apontou para o tapete da porta do hall de entrada. Eu nem dei muita bol, mas limpei os pés para evitar conflitos momentâneos - eu voltara de uma boa experiência, não queria que um porteiro de merda me deixasse emburrada. Eu voltei cedo porque os caras da loja ficaram de entregar o sofá agora - por mim ficava mais tempo na rua, já que o tempo está bom. O meu casaco verde escuro não me favorece, mas eu reparei que tinha um senhor na cerimônia que não tirava os olhos dos meus. É algo desconfortável, sabe, quando você está chorando por alguma bobagem em que anda pensando, num local super temático para tal, e um velho resolve te achar bonita. Quer dizer, ele podia ter desconfiado de alguma coisa. Mas agora tanto faz. Não falam por aí que os jovens não têm cabeça, são todos imaturos e fazem coisas para chamar a atenção? Então, de repente eu sou assim também.

Acontece que, por alguns segundos, eu me senti um elo daquela corrente de tristeza. Mesmo pessoas como o marido da mãe das crianças que corriam, que devia estar pensando em coisas do trabalho ou ouvindo o jogo de futebol no rádio com fones de ouvido megadiscretos, sentem coisas parecidas em momentos ímpares. Sabe, diante da morte, por exemplo, todo mundo é igual. A gente finge que não, mas morre de medo de conhecer a nossa vez. E talvez eu queira todo esse mar de poderes que vem depois da passagem, mas eu nem sei se acredito nisso que eu digo acreditar. Parece que eu passei o tempo todo fugindo de tudo, fugindo da vida, feito aquelas crianças que, sem saber, brincavam felizes e cruéis diante da única verdade universal. É claro que elas não vão escrever isso numa redação para a escola e é claro que nem têm noção da complexidade que envolve um defunto. Nem eu sei.

Talvez eu nem devesse parar de fumar - sempre que eu penso o contrário me acontecem essas viagens.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Fuckhoroscope

Oh god... Não sei se fui eu que não reparava muito, mas as pessoas parecem tão mais generalizadas. Ok, não é neste sentido que deve ter soado: todo mundo está tão mais feliz se descrevendo com coisas comuns e vagas. Eu gosto de astrologia, gosto mesmo, mas ouvir sobre isso o tempo todo é muito irritante. Principalmente quem justifica todas as atitudes e características e papapá com esse artefato. Conhecimento de horóscopo de jornal é algo lindo, mas só para quem escreve as besteirinhas nos quadrinhos. Que merda. Eu nem ia falar disso, mas já que eu me lembrei de alguns fatos resolvi comentar. Como se todos os taurinos fossem do mesmo jeito, só os cancerianos pudessem fugir para o lado emo da força e essa coisa toda. "Ah, ela é de gêmeos, né cara? Tinha que ser duas-caras." - quem merece isso? Que perseguição do diabo, que neura. E aquela propaganda toda no Orkut (veja como sou quente hein, o meu signo é foguentinho). Que coisa bizarra. Tá, eu juro que queria ter feito algo melhor do que só jogar essa reclamação aqui. Mas eu vou deixar tudo um trapo mesmo, afinal eu sou teimosa, né? Sabe como são essas arianas...


quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Acetona


O telefone tocou. Uma, duas vezes mais. Ela continuou sentada na poltrona, com o vidrinho de esmalte preto comprimido entre as pernas. Ouviu sua voz dar um aviso à pessoa que estava tentando contatá-la, algo sobre ela não estar disponível e, por favor, deixar um recado e aguardar. Fora uma mensagem infantilmente alegre, uma vez que o som desafinado do violão não fora abafado durante a gravação: nada surpreendente para uma jovem que reúne os amigos no apartamento com certa freqüência.
A camisa de flanela não cobria grande parte de suas coxas - e, ainda assim, a façanha era praticamente impossível levando em conta a posição da garota. As mãos recheadas de anéis prateados ganhavam destaque com a tinta nas unhas. O dia, lá fora, estava mais para domingo: vento, nuvens e menos luz do que o habitual. O clima, dentro da casa, era atemporal: o calendário mais parecia um enfeite, presente de mau gosto - não tinha muita utilidade.
- Natalie, eu sei que você está em casa. Tá, eu sei que você não quer atender, mas... Veja bem, eu estou ligando com a melhor das intenções, você sabe que eu não ligaria se não fosse por algo importante, né? ...Bom, você não vai responder que eu sei, mas eu sei que você está aí ouvindo tudo o que eu estou dizendo...
Ela se levantou, com os dedos esticados, para ir até a cozinha, onde pegaria um copo de água fresca e abriria a geladeira na saída, para olhar o que tinha dentro dela, como se isso fizesse parte de um ritual. Os pés se cruzavam a cada passo dado nas lajotas gélidas de inverno. Correu para a poltrona, com um biscoito amanteigado entre os dentes.
- Você não vai atender mesmo, né? Eu devia ter ouvido a Bonnie... devia mesmo. Tá, não era isso que eu queria te dizer mas, já que eu toquei nesse assunto, eu devo te contar sobre a Bonnie. Ela anda falando cada coisa, cada coisa mais horrível... Eu sei que a sua reputação não é das melhores, ela deixou isso bem claro, mas se ela continuar falando tudo o que ela diz ela também vai ser vista com maus olhos. Pode escrever que vai. Mas... e então? O que você tá fazendo que não pega nesse telefone? Ah, é o Gabu? Ele tá aí contigo?
Os farelos que rondavam a boca foram atirados para longe quando Natalie passou o dorso da mão pelo local, entediada. Tomou um gole de água antes de se esticar em direção a pequena mesa de centro, onde a embalagem de acetona estava. Bocejou ao desenroscar a tampa azul e, em seu lugar, encaixar uma bolinha de algodão colorido. Estava sozinha e sem paciência para o mundo, ainda que o máximo de perigo que esse oferecesse no instante fosse o monólogo de uma conhecida que parecia não ter o que fazer senão criar problemas em relacionamentos praticamente inexistentes.
Antes que pudesse ouvir mais da boca de Lee, apertou um botão qualquer do aparelho, o que fez com que a ligação fosse abortada. Assustou-se ao ver um vizinho, na janela de frente para a sua, e correu para fechar as cortinas. Tudo pareceu mais mórbido e perfeito. Passou a mão pelos cabelos bagunçados e mais uma vez se acomodou na velha poltrona.
- Gabu... - Natalie riu. Agitou o frasco de acetona e pegou o pedaço de algodão encharcado, aproximando-o do nariz. Repetiu o movimento incessantemente e não tardou a fechar os olhos, extasiada. Os telefonemas seguintes, que também não receberam atenção, foram ouvidos silenciosamente apenas por Bonnie que, após acordar e se perguntar onde estava, avistou uma roupa que não lhe parecia estranha na sala. Não entendeu o que fazia a camisa do namorado no corpo da amiga. E nem tentou achar explicação. Tirou o frasco de acetona do colo de Natalie e pôs-se a sentir seu aroma.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Ok.


Passei um longo tempo escrevendo merdas e apagando. Talvez eu devesse só dizer que hoje eu não estou com os pensamentos organizados. Desconfio daqueles que dizem estar, uma vez que as pessoas teimam em surpreender as outras de maneira desconfortável. Nem Tallulah, nem Laurah, nem Claire, nem Clementine: hoje eu sou só a Ivy - igualmente vazia e complexa.

Não era para soar bonito.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Relationships.

Não que eu ignore os princípios da poligamia, mas eu realmente vejo as coisas a partir de suas interações com outras, duas a duas - e, mesmo num sistema onde as trocas sejam mútuas entre mais indivíduos, a situação das duplas está presente integralmente em cada núcleo. Num mundo onde a máquina tende a dominar o homem, seu criador, não entendo como este não se mostra eficiente no controle de suas ações e julgamentos - a evolução do ser racional parece não abranger todas as áreas dos seus pensamentos. Falar em emoções é mais fácil do que compreender o universo que as envolve, porém de nada custa observar alguns fatos desse amor mundano a que todos estão acostumados a presenciar.

Se antes o casamento selava um acordo entre nobres por razões claramente econômicas, com o tempo recebeu o ar do romantismo merecido, ganhando espaço no sonho das virgens inoce
ntes e outras mulheres não menos dignas: uma pitada de religião ao ciclo da vida. Nada mais comum do que procurar alguém para dividir as contas do fim do mês, a cama e as eternas conversas - infinitas até que a morte os separe, para realizar a façanha de ter filhos e concretizar planos que não saíram do papel por falta de motivação. No fundo, o casamento é um fruto do desespero, um ato rotineiro e vazio que busca estabilizar certezas que, bem, não são certas. Prometer amar alguém diante de todas as situações, ao longo dos anos, por motivos momentâneos - e ainda assinar por isso - é algo que realmente deveria ser levado a sério, ainda que beire a loucura. Independente da existência de um deus, as pessoas temem a maneira como vão morrer, se estarão sozinhas, quem se importará, essas coisas... Assumir o compromisso de eterno companheirismo tem o poder de confortar, ainda que hoje em dia seja muito mais recompensador se ver livre de um relacionamento do gênero... Enfim.

O casamento não encontra mais base na sociedade que vem send
o construída e isso pode ser visto na imaturidade e na forma precoce com que jovens e experts no assunto se relacionam. Desde muito cedo, por motivos diversos, cada pessoa cultua a outra como se fosse um produto descartável, às vezes útil, às vezes invisível, o que está presente em várias relações. A intensidade do problema é maior quando o indivíduo busca como aliados pequenos sintomas de seu descontrole, entre os quais o famoso ciúme e desejo de reabastecer seu ego com bons e novos elogios. O jogo de receber cuidados é perigoso, uma vez que nem sempre o encantamento é recíproco. Ainda assim, mesmo nos casos onde ambos os envolvidos se dizem apaixonados, não é raro o tratamento de "propriedade privada" que um recebe do outro - a velha história de querer ser o um entre um milhão, de não se contentar em ser o escolhido e tratar todo o resto como inimigos na guerra. Nasce, então, um sentimento de insegurança que, quando não é suprimido, é alimentado por uma série de acontecimentos muitas vezes irrelevantes e que, mal interpretados, dão início aos abalos na relação do casal.

Em outras palavras, é realmente irônica a experiência de exigir da "pessoa amada
" algumas mudanças, bem como afastá-la de sua vida social - uma vez que somos todos uma mistura de valores e sensações, de preto e branco, o que pode ser defeito para uns tende a ser bem-visto por olhos diferentes e exigir perfeição de alguém, em qualquer hipótese, é sinônimo de se afastar a passos largos da possibilidade dessa existir. A idéia de moldar algo a seu gosto é viável, mas somente para coisas inanimadas. Resquícios de experiências passadas podem ilustrar essa idéia.

As pessoas se habituaram a falar o "para sempre" o tempo todo, a não pensar que o amanhã traz impossibilidades - ou que nem este sempre chega. Agem com tanta simplicidade ao reclamarem dos problemas que tem que enfrentar ao longo dessas interações humanas, mas ignoram que desprezam a razão em momentos oportunos. É mais fácil ouvir o coração, o som do perigo, desarmar as preocupações com a certeza de que as imprudências sempre são saborosas - até provar do amargo, do azedo, do lado podre das emoções. Primeiro, o auto-conhecimento, depois o descobrimento do outro, do sexo oposto (ou não), do diferente, do que pode te complementar ou desestruturar: as coisas andam acontecendo de forma invertida, formando-se primeiro os laços para depois perceber os nós.

Sufocar o outro é uma das conseqüências de um problema puramente individual, onde o indivíduo deve ser capaz de perceber em si os erros a serem corrigidos. O homem não está mais acostumado a dividir, uma vez que desde cedo é ensinado a crescer diante dos medos, a enfrentá-los bravamente, sem tomar conhecimento de sua origem - podando o mal ao invés de arrancar-lhe as raízes. E, então, são cada vez mais numerosas as famosas desilusões, que tanto inspiram músicos e outros artistas, mais incompreensíveis e perturbadores os desfarces que algumas mentiras encarnam e, óbvio, mais frios e rápidos os relacionamentos. São crianças que brincam de adulto e adultos que insistem em serem crianças: a bagunça já está formada.

Uma das razões para a incompatibilidade é o famoso egoísmo - mas, em tempos de felicidade, ceder não parece ser uma tarefa árdua. Defender idéias também não é perigo quando se sabe com quem está lidando e o que está sendo dito - acredito que muitas confusões vem da não-reflexão das futuras situações inesper
adas (cabe nessa chave a vantagem do auto-conhecimento). Como última coisa a ser observada, nada é mais importante do que a tão discutida confiança - que se estabelece com o tempo e a certeza involuntária e ímpar de cada um da dupla.

Eu espero não ver mais sujeitos enrolados com fios no programa da Márcia, respondendo se traiu ou não a esposa, nem testes banais em revistas de meninas sobre a fidelidade ou a veracidade dos sentimentos "do gato por você", mas isso é apenas um daqueles desejos que estão bem longe da realidade. Até lá ainda vou ouvir muito sobre adolescentes e seus anéis de compromisso discutindo na parada de ônibus sobre a loira oferecida da festa de sexta ou coisa parecida. Nunca se sabe quais novos "problemas de casal" irão surgir - o que é certo é que, independente de suas naturezas, se acumularão sobre os já citados e tardarão a oferecerem a possibilidade de um adeus (tão nobres quanto os casamento das fábulas).



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