sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

96


Eu abri as portas com força, apesar da cena ser exagerada. Olhei para aquelas roupas e sapatos, as bolsas, a coleção de cd's, os boxes de dvd's com os mesmos seriados, as fotos com... bem, o meu piercing é do lado esquerdo. O dela é no lado direito do nariz. Aliás, tudo nela parece direito. Uma boa garota, com um ótimo gosto musical e tato para livros. E fiquei olhando as fotos, recheadas de cabelos ao vento, sorrisos espontâneos e algumas paisagens conhecidas: acho que nada nela me parecia novidade. Não se tratava de falta de originalidade, mas uma faixa de coincidências muito intensa... Coincidência?! Quem eu estou enganando? Ela era exatamente como eu. Exatamente como eu. Depois de constatar isso com meus próprios olhos, nunca tive tanta certeza da veracidade daquela coisa de "vou saír por aí e encontrar outro você". Eu pensava que aquelas coisas me fizessem especial, sabe. Não exatamente dividir o cabelo de um jeito ou de outro, mas toda aquela composição das coisas materiais. Quer dizer, isso é só o que eu sei dessa nova garota. Não conversei com ela, então não posso afirmar que somos tão parecidas assim, em personalidade e na forma de se mostrar ao mundo. Ao ver a escrivaninha, abrir as gavetas, folhear alguns cadernos, pude aceitar que ela era mais organizada. Talvez mais limpa. Sabe, parecia tudo impecável, como se ela fosse um reflexo melhorado de mim. Um alguém que fala outras línguas, além do clássico inglês mal-pronunciado. Um alguém que come doces e não engorda, porque entende de calorias e exercícios físicos e essas coisas que grande parte das mulheres parece saber. Um alguém mais independente e sem medo de parecer ridículo. Não é que eu tenha medo dos outros ou da imagem que é feita de mim, mas a idéia de fazer coisas sem saber por que não me parece muito agradável. Ela parece nem se importar. Talvez isso seja um defeito. E, talvez, eu me importar seja outro ainda maior. Se a gente se encontrasse, garanto que ela me cumprimentaria numa boa, até por não saber o que eu fiz. Não é sempre que se invade assim a privacidade de alguém. O quarto pode dizer muita coisa. E ela não é uma jovem-cor-de-rosa para acreditar inocentemente que eu quero a amizade dela. Eu não quero isso. Não quero. Quero mesmo é entender o que ele viu nela, que eu não percebi. O que temos de tão diferente, de tão incomum. Eu costumva ser a vítima de todo o assédio que hoje é dirigido a ela e só ela. Eles parecem felizes juntos. E não é que eu queira destruir isso. Eu não estou apaixonada. Acho que nunca estive. Lamento não saber tirar os pés do chão quando eu poderia ao menos tentar. Essas fotos não negam o quão alegre ele se sente ao lado dela. Mesmo que ela tenha uma falha na sobrancelha, ela faz ele feliz. E parece não querer nada em troca e se sentir bem com isso. Ele sempre do mesmo jeito, com aquele anel lascado no dedo de sempre. E ela não parece se importar se ele esquece de fazer a barba ou queima o arroz toda a vez que tenta fazer um carreteiro. Talvez seja realmente isso, sabe: ela não se importa como eu me importo. E isso me deixa presa nessa angústia de ver o que eu não vivi e, provavelmente, não vou viver. Tipo aquelas conchas que se tornaram órfãs há pouco e agora esperarão o pisoteio dos turistas nas areias das praias. De repente não parece tão triste. Mas é engraçado, sabe, porque ele podia ter escolhido qualquer pessoa, de qualquer jeito, mas escolhe alguém que defende praticamente as mesmas coisas que eu, que detesta iogurte de morango também e sabe se comportar perante a familia dele. Foi o que eu ouvi. Não que ele tenha me contado, ou que ele saiba que eu tenho conhecimento sobre a vida dele. De qualquer jeito, é tudo público. E, te juro, se eu não me conhecesse tao bem, depois desses anos todos de convivência com a minha aparência, poderia confundir o rosto dela com o meu. Só os olhos que não. Os olhos dela me intimidam. Eu não deveria estar aqui. Nunca foi o meu lugar. E, apesar de todas as semelhanças, ele não parece me notar nos gestos dela. Eu costumava tocar violão graciosamente, mesmo que canhota. Talvez eu seja o lado esquerdo dela. Ou talvez ela seja o que eu tentei ser e não consegui. O fato é que ela vê graça naquilo que eu perdi e isso eu realmente não entendo. Talvez, um dia, ele me explique.

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