segunda-feira, 19 de maio de 2008

A História de Estella.

O cigarro pressionado entre os lábios bem desenhados, as mãos bonitas ao redor do isqueiro. Fogo, luz fraca e fumaça.
- E aí, como foi?
- Como foi o quê?
- Como assim "o quê?", você sabe...
Lençóis bagunçados; o sujeito se arrastando, beijando as coxas dela.
- Ah, pára com isso.
Ela se levantou, os olhos fixos nas vidraças.
- Não gostou?
- Seria melhor sem essa pergunta.
Pelos buracos da persiana rústica, viu uma mulher com uma criança descerem de um carro azul.
- Ah, volta pra cá. Tá frio, volta.
- Eu não sinto frio.
- É claro que você não está com frio, você ainda está quente...
- Eu disse que eu não sinto frio.
- Cruzes, Estella. Você não sente nada.
Fumaça, o cigarro entre os dedos. Chutou para cima a calça jeans do chão, pegando-a no ar com a mão desocupada. Tal movimento era um hábito.
- Já vai embora? Como assim, onde você vai?
- Eu vou sair. Eu não moro aqui, daqui a pouco sua mulher chega.
- Não, ela vai para a outra casa. Essa daqui está em desuso, você sabe. Eu te disse para ficar aqui de vez e você não quis.
- Eu não quero fazer mais parte da sua vida do que você faz da minha.
Ele se levantou, ainda sem roupas, procurando pisar nos chinelos de couro marrom. Abriu os braços, sugerindo um abraço - que lhe foi negado.
- Você tem ciúmes, é isso?
- Não. Só que eu não preciso disso, eu tenho a minha casa, eu pago as minhas contas. Eu não transo contigo para ganhar recompensas.
- Ah, então pelo menos você gosta.
- Me poupe, Fernando.
Os pés descalços, a mão no telefone.
- Sabe o número de algum ponto de táxi?
- Ah, pára com isso, eu te deixo em casa.
- Não, eu vou sozinha. Só me consegue um copo de alguma coisa.
- Whisky?
- Qualquer coisa.
- Água.
- Que seja. Não, não me abraça. Eu estou irritada.
- Eu sei, eu vi que você se alterou... mas o que houve? Te machuquei?
- Não, é claro que não. Olha só o seu pinto.
- O que tem ele?
- Nada, eu só disse para você olhar.
Risada breve.
- Não é engraçado como vocês, homens, se preocupam com isso? Metade do tempo é consumido pelo toque, a outra metade pela boca. Isso daí é o de menos, e vocês julgam o mais importante.
- Ah, agora você virou feminista... na hora em que...
- Cala a boca e pega a água.
Calçou os tênis sem meia, não estava afim de procurá-las pelo quarto grande e cheio de papéis.
- Eu te levo, está frio. Só me deixa colocar uma camisa.
- Eu vou sozinha.
Bateu o copo na escrivaninha, o que despertou a ira do homem.
- Vem cá, o que está havendo? Eu sempre te tratei bem, você está agindo como uma menina mimada.
- Vai dizer o que, que eu não tenho educação?
- Também.
- Vindo de você isso é realmente engraçado.
Bebeu o resto da água que não fora arremessada para fora do copo.
- Te incomoda o fato de eu ter outra mulher, é isso.
- Me incomoda o fato de eu não ter o que fazer. Eu estou entediada, cansada dessa vidinha mais ou menos. Não gosto de estar contigo, como estou fazendo, não gosto das nossas conversas sem conteúdo, que sempre acabam na cama, de maneira depressiva.
- Depressiva?
Pegou o sutiã do chão, amassando-o para dentro da pequena bolsa de verniz preto. Vestiu uma regata bege que puxou de dentro do armário, na qual veio enrolado um cachecol antigo cor-de-vinho.
- Está frio lá fora, você não vai só com isso. Leva um casaco, depois você me devolve.
- Eu não vou mais te ver.
A fumaça sendo modelada pelos lábios voluptuosos vermelhos.
- Decidiu isso agora, do nada?
- Sei lá. Você por acaso gosta da minha companhia ou não faria diferença se eu fosse outra qualquer?
- Que bobagem, Estella, é claro que eu gosto!
Socou os cabelos longos para dentro da blusa, penteando a franja morena para trás, com os dedos.
- Você é tão bonita, tão atraente, tão sexy. Tá, não me olha assim, eu não quis dizer só isso... sabe, você é superinteressante, provavelmente a garota mais legal que eu já conheci.
- Ah, conta outra.
- É sério... tá, você vai me perguntar sobre o meu casamento com a Suzane, mas eu já cansei de falar que...
- Ela está doente, ela é paranóica, ela isso e aquilo. Vem cá, eu quero ouvir alguma coisa sem ser comparada com ninguém.
- Tudo bem, então. Você é... especial. Diferente.
- Diferente?
-
Diferente.
- Ok, e como?
- Diferente como uma garota diferente, ué.
- Diferente como uma garota qualquer diferente, é isso que você quer dizer. Eu sou igual a qualquer uma.
Amassou a bagana contra o rodapé, manchando a parede com as cinzas ralas.
- Ah, não estraga...
- Você tem dinheiro disponível mesmo, não vai fazer diferença se sua mulher não vem aqui olhar.
- Tá, espera, não sai correndo.
- Eu te esperei colocar a camisa e você não fez nada.
- Tá frio... fecha a porta.
- Porque eu deveria ficar se eu tenho mais o que fazer?
Os olhos se cruzaram, sérios e cansados. Silêncio, sem fumaça. Apenas perfume, o perfume dos amantes.
- Última vez. É de verdade então?
- É.
- Eu não sei como agir, eu nunca fiz isso antes. Eu deveria me despedir?
- Não seja ridículo, nós não temos um caso de amor.
- Mas eu gosto de ti.
- Fazer listinhas e enumerar qualidades... isso não torna ninguém especial.
- Qual seria a melhor resposta?
- É simples: você gosta de mim porque eu sou eu.
Ele riu brevemente, mas o gesto não foi acompanhado.
- Aristóteles?
- Você é mais velho mas não tem maturidade mesmo. Eu não me enganei.
- Hey, eu prometo que vou te tirar dessa... espera só mais um pouco...
- Mas eu não quero ser sua mulher. Eu estou cheia, você não entendeu? E não é só de você não, é de tudo. Eu tenho que tomar um rumo.
Silêncio, olhos baixos.
- Quer um café?
- Não. Foi assim que tudo começou, há dois anos, com essa mesma frase.
Olhos tristes.
- Foi porque eu não te liguei na virada do ano?
- Foi porque o meu coração nunca bateu.
- Eu sinto muito se...
- Não, você não sente. Mas a culpa não é sua, porque eu não sinto também.
- Então está tudo resolvido, tão simples assim?
- É.
Barulho de um celular vibrando sobre um móvel.
- É a Suzane...
- Tudo bem, atende.
- Só não vai embora, eu falo rapidinho com ela.
As falsas declarações de saudade de Fernando foram a última coisa que Estella ouvira antes de bater a porta da frente da casa. O viu na janela, os olhos por entre os buracos da persiana, as mãos agitadas num gesto desesperado, pedindo que ela o esperasse concluir a ligação.
Saiu andando sem rumo, sentindo o frio gelar os pulmões. Não estava satisfeita com a vida que levava, com a certeza de que era um tapa-buracos na vida dos outros - e este era o seu papel, o tempo todo. Não só na cama, mas em todos os momentos se sentia incapaz de alcançar a própria satisfação. Cigarros vazios, assobios vazios, abraços sem calor, diálogos que não diziam nada.
Talvez estivesse na hora de repensar conceitos, traçar planos, mas um carro preto parou ao seu lado, rente à calçada.
- Eu disse para você me esperar, Estella... que teimosia.
"Vou começar mudando de nome". Seguiu indiferente até a quadra seguinte, ignorando o fato de estar sendo seguida.


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