terça-feira, 6 de maio de 2008

A História de Anna.

Anna!
Anna!
Anna!
Anna...
Sentou sorridente no assento de madeira pintada, embalada pelas mãos que lentamente impulsionavam as correntes. As mechas do cabelo loiro encaracolado pareciam fugir do seu rosto, enroladas em fitas delicadas. As pernas seguiam em sentido contrário, desejando ir de encontro ao céu azul.
O campo era nada mais do que a extremidade de um penhasco, desses cuja distância até o chão parece infinita. A árvore secular, o balanço antigo, o frio amargo. Aquele vai-e-vem parecia digno de outro mundo: nada se escutava, senão o ruído dos galhos e do desgaste do ferro. Sem pássaros para gorjear, sem borboletas para roubar o olhar da menina.
O vento úmido afastava todo e qualquer pensamento, todo e qualquer problema, toda e qualquer emoção.
À altura daquele pedaço de terra, um campo amarelado, à metros dali. Não tinha muitos atrativos, senão o mistério sobre o que era capaz de esconder. O silêncio é inimigo do tempo: quem tarda a responder, justifica mentindo. Pensar demais é sinônimo de se enganar.

Anna apertou as mãos magras com força, deixando o resto do corpo relaxar. Estava dormindo acordada, maravilhada com a possibilidade de voar. Seria, enfim, livre. Livre de sua condição de criança - cuja voz é calada sem piedade pelos mais velhos, livre da opressão, livre das barreiras que a separaram dos seus desejos. Livre, por fim, do medo.

Fechou os olhos e sentiu o ar invadir sua boca, passando pelos dentes e fazendo cócegas na língua. Uma canção se iniciou, projetada pela voz fina, feminina, infantil. As pontas do cachecol dançando no ar.
De repente, não mais que de repente, o balanço começou a perder a velocidade: as mãos que o embalavam agora estavam afastadas. O vulto escuro descia por uma pequena estrada de lama que se fez na grama, sorrateiro, sem cerimônia.
Anna, enfurecida, moveu os pés para frente, viajando em suas lembranças mais platônicas. Estava tão mais perto das vozes que um dia ouvira e pareciam não ter dono, estava tão mais acima de qualquer expectativa, tão próxima de qualquer amigo irreal. Gostava de falar com objetos, era fato, mas não compreendia porque isso era tão errado para os outros.
Anna!
Abriu os olhos num susto.
Anna!
Sentiu a saia do vestido tomar a forma de um balão.
Anna!
Abriu os braços o máximo que pôde e, indecisa quanto ao que esperava, mostrou os dentes num largo sorriso: lá estava ela, mais alto do que qualquer um já estivera, vendo toda a beleza dos campos coloridos se misturarem num só. E mais, muito mais: o campo amarelo - ela agora sabia o que ele tanto preservava...
Anna...
Os gritos de sua mãe não foram o suficiente para salvar sua vida.
Não houve vulto, não houve emoção, não houve razão naquele pulo desesperado, pensou a mulher.
Mal sabia ela que aqueles minutos de silêncio foram o bastante para que sua filha encontrasse o que uma vida inteira no mundo dos homens não lhe proporcionaria.


Um comentário:

Ricardo Cavalera disse...

Sabe, eu realmente gosto dos teus textos. Não falo isso porque eu acho que deva te falar. Falo isso independente de gostar de te achar legal sabe?

O que eu quero dizer é que tipo. Se tu fosse uma tiazona de 666 milhares de anos, e com uma verruga enorme e peluda no nariz, ainda assim eu leria esse texto e gostaria dele.

sabe, as vezes eu sonho com voar ( e não, não me lembre daquela conversa sobre Freud e o que significa sonhar isso), e pelo que eu me lembro, nada no mundo se compara a sençação de não ter peso, de simplesmente estar ali, planando sobre as coisas. Eu gostaria de voar, como essa garota, só por uma vez. Melhor se eu n tivesse que morrer para isso, ou sei lá, atingir um prédio ou a calçada.

Ainda bem que tu n tem uma verruga no nariz né.

See ya Kiwy

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