terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

pt. 6

Girou a maçaneta e empurrou a porta, que rangeu. Apertou o interruptor. Com a luz acesa, deu alguns passos, dirigindo-se ao centro do quarto, onde um tapete peluciado rosa em formato de flor se escondia sob pilhas e pilhas de papéis. Jogou-se na cama desarrumada, desviando das roupas jogadas e de uma caneca suja e que ainda continha um pouco de um líquido escuro.
- Que nojo, você põe um quilo de açúcar no café!
- Ponho? - Agatha entrou no quarto distraída, chutando um ou dois pés de sapato pelo caminho. - Ah, eu devia estar ansiosa... Sabe, né? A gente toma água com açúcar nessas horas. Dizem que isso é bom para se acalmar...
- Superstição besta. - Juntou as mãos, apoiando-as sobre a barriga. - Funcionou?
- Você me viu lá no escritório... Até a hora de assinar o contrato com o cliente aquele eu estava bem tranqüila.
- Você ainda não caiu na real? - Olhou incrédulo para a moça à sua frente, achando-a uma completa idiota. - Foi uma farsa, não existe cliente... O tempo que você trabalhou para Lorah foi necessário para fazermos mais alguns testes... Nada daquilo era real.
- Eu entendi, Antoine. Não sou tão trouxa quanto você imagina. - Ela mirou-o com uma expressão séria. Ele demorou para dizer alguma coisa. Parecia estar pensativo, com os olhos vazios e a mente cheia de visões.
- Achei que fosse perguntar mais coisas para o Arthur.
- Eu também. - Mordeu os lábios. - Ele parece ser muito frio.
- Ele é um cara legal.
- Percebo...
- É sério, você deveria conhecê-lo. - Ao dizer isso, desejou esconder que estivesse prestes a rir.
- Mas é claro que sim! Como não pensei nisso antes? Vou procurar algum buraco entre os espelhos e gritar por ele!
- Não preciso aturar seu humor barato. Olha, eu entendo que...
- Entende? Eu não sei que dia é hoje, que horas são, porque você me trouxe pra casa, não sei se vou dormir e acordar, se...
- Eu te trouxe pra cá porque achei que você precisasse se sentir em casa. - Antoine falou com convicção, ainda que parecesse por um momento um jovem sensível.
- Se liga, você não entende nada! Não é você que, de um dia pro outro, acorda num lugar desconhecido e é ameaçado de morte.
- Mas eu vivo nesse mesmo lugar desconhecido, sob pena de perder a cabeça se eu abrir a boca.
Agatha duvidou das palavras que ouvira por um instante. Depois, caminhando lentamente em direção à cama, considerou verdadeira a afirmação do rapaz. Sentou-se ao lado dele, imitando sua posição. Observou o ambiente com pesar.
- Aquilo ali é uma câmera?
- Sim. Aquilo dentro do porta-lápis, na mesa, também. E mais aquele troço empoeirado em cima do armário.
- Com microfone e tudo?
- É claro.
- Vocês gravaram também minhas conversas telefônicas?
- Positivo.
- Hey, eu não sei mais o que pensar... Isso é loucura... Ele é o que, um psicopata?
- Não. - Pegou um cubo mágico que encontrou sob o travesseiro e começou a brincar com ele. - Você tomou um dos remédios que ele te deixou naquele embrulho?
- Ainda não. Não tive dificuldade para dormir... é só o que eu faço lá. - Sorriu, observando a expressão séria de Antoine. - Que foi?
- Sabe... você tem que ver que não é tudo como parece. Você olha pra mim como um amigo, acredita fielmente que as pílulas são calmantes... - Jogou o cubo para o lado e começou a gesticular com as mãos. - Olha pra você! Quem é que toma água com açúcar nos dias de hoje?
- Legal, estou sendo drogada. Você acha que estou surpresa? - Ela não parecia abatida. Pelo contrário, tratava realmente Antoine como um aliado. Era jovem o suficiente para não ter medo de arriscar, porém inocente o bastante para não farejar qualquer sinal de perigo. Há muito tempo não sabia o que era dar satisfação aos pais, ou manter um relacionamento sério com alguém, ou fazer programas aleatórios com os amigos. Era uma garota solitária, responsável, muito ocupada. Trabalhava, estudava, pagava as próprias contas e, quando podia, limpava o pequeno apartamento. A única pessoa que talvez recebesse considerável atenção era um motoboy, Romeu, que conhecera pelas inúmeras entregas de pizza em sua casa, nas noites de sexta-feira. Se falavam com certa freqüência e, vez ou outra, assistiam um filme ou jogavam sinuca.
- Acho que deveria ser cuidadosa.
- Como? Tem mil raios naquela escada que, aliás, é a única saída. Sem contar que a minha única fonte de comida é vigiada pelo Arthur. A única pessoa que eu vejo é você. Aquilo deve estar recheado de câmeras e monitoria 24 horas.
- Você está equivocada. Não acho que exista apenas uma saída. - Franziu a testa, como se perdesse a paciência a cada nova suposição da menina. - Você não está no corredor da morte... ainda.
- Você fala como o Arthur.
- Oh, obrigado. Eu tento. - Durante alguns segundos, deixou-se tomar por uma felicidade quase infantil. Então, reconstruiu a face pensativa. - Sabe, eu gosto dele. E você não deve ter sido escolhida por acaso. - Olhou para Agatha com interesse, procurando descobrir algum detalhe que confirmasse sua idéia. - Eu, sinceramente, não sei o que ele pretende fazer. O conheço há tanto tempo quanto ele conhece você... eu acho. Acompanhei seu caso desde o início sem saber do que se tratava.
- Sem medo? Porque isso é perigoso, é ilegal...
- Você não sabe do que se trata também, por isso considera perigoso. Acho cedo para ter alguma certeza.
- Então porque ser cuidadosa? - Se arrependeu do que dissera por um momento, se lembrando de que seu medo era fundamentado pelas palavras que ouvira de Arthur.
- Ora, não me pergunte algo tão ignorante! - Deu um tapa barulhento na própria coxa e parou de falar por algum tempo. - Olha, mesmo que eu soubesse algo além do que te disse, é óbvio que você não saberia. O que eu quero te fazer enxergar é que você não precisa ficar mofando em uma sala se o que você deseja está fora dela. Dá um jeito de sair usando a cabeça e não as mãos. É o que eu faria...
- Lamento te desapontar, mas o que eu queria já aconteceu: estou em casa. Não me importaria de fingir que nada aconteceu e retomar minha vida normalmente. - Deixou-se admirar pelo rosto nervoso de Antoine, que voltou a falar com tanta vontade que não pôde evitar que algumas gostas de saliva encontrassem o ombro de Agatha.
- Como você pode ser tão tola? Nada vai continuar normalmente! Ou você está dentro, cooperando ou, ao menos, tramando uma fuga do seu jeito, ou você está fora. - Fez um gesto de "cortar o pescoço" um tanto mau-feito.
- Eu estou na minha cama com um estranho. Posso chamar a polícia agora, se eu quiser.
- Não. Mesmo que você conseguisse me enfrentar, existem homens armados em posições estratégicas, as linhas telefônicas foram cortadas e você teria que, no mínimo, gritar muito, mas muito alto para alguém te ouvir... sendo que as paredes são duplamente forradas, a fechadura da sua porta ganhou reforço-extra e, bem, misteriosamente seus vizinhos foram passear...
- Que ridículo tudo isso. Até parece que eu ia fazer alguma coisa...
- Eu gosto de você acreditar em tudo que eu digo, dá até pra exagerar... - Riu Antoine. - Anda, você tem dez minutos para pegar o que quiser levar daqui. Vou te esperar na sala.
- Hey, como assim?
- Não acho que você vai querer estar aqui quando tomarem seu apartamento...
- Mas... você tá falando sério? Vai me levar de volta?
- Te dou quinze minutos, então. Agora pára de palhaçada, que eu não vou suportar sua voz aguda chorando no meu ouvido de novo.
- Como assim, o que eu pego?
- Qualquer coisa, menos roupa. - Caminhou em direção a porta, pisando numas folhas soltas de papel. - Nem pensa em levar aquele cachecol. Ninguém agüenta mais te ver com ele. - Frisou, se satisfazendo com a cara assombrada que a garota fizera.
Passaram-se uns onze minutos, quase doze. Antoine voltou ao quarto, bebendo um licor que encontrara lacrado na cozinha. Abriu a porta com estrondo, numa tentativa de assustar a garota. Ela deu um grito baixo, mas nada muito escandaloso. Estava encolhida, abraçando as pernas, sentada na cama. Ao que parecia, não fizera nada diferente disso na ausência do rapaz.
- Não vai levar nada então?
- Meu licor! Onde você pegou isso? - Ela parecia surpresa em ver a garrafa. Aguardou em silêncio a resposta de Antoine, que demorou para chegar.
- Ele tem razão, sabe. Você deixa qualquer um entediado.
- Que horror! Nunca ouvi nada assim.
- Pára, não faz essa cara de choro... - "Porque mulheres sempre choram por nada?" pensou.
- Eu achei que você fosse um cara legal...
- Eu sou legal, você que é uma chata. - Apesar de não estar mentindo, falou em tom de brincadeira. Ao ver a garota esconder o rosto nas mãos, chorando, estendeu a mão com a garrafa de licor. - Toma. Eu vou te levar pra casa.
- Eu não quero ir, não quero ir...
- Escuta, eu tenho que te levar de qualquer maneira... vai ser melhor pra mim se você não recusar o convite.
- Mas que cara-de-pau! - Ela ficou vermelha, vermelha de raiva. Chorava de um modo esquisito, que não despertava pena em quem a visse.
- Hey gata, eu estou sendo bonzinho. Te incentivei até a fazer jogos psicológicos para divertir o Arthur e poder passear por lá. - Ela pegou, enfim, a garrafa e bebeu um pouco do licor. - O certo seria eu te iludir e fingir que tudo será diferente quando você voltar. Poderia dizer que se trata de um programa de tevê, onde há muito dinheiro em jogo, mas... você sabe que só tem uma escolha a fazer: ou você vem comigo bonitinha ou dá adeus ao mundo cruel. Eu não vou mais te enrolar.
- Qual a diferença entre morrer agora ou depois?
- Você pode mudar o rumo das coisas.
- Mas se o final é o mesmo...
- Eu deixo você pegar o cachecol. Agora vamos embora daqui. - Ele pegou o cachecol e jogou sobre o ombro de Agatha. - Só me devolve o licor.


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