- O que ela vai pensar de mim? - Com as palmas das mãos estendidas, sob a torneira aberta, apertou os olhos. Passou a água pelos cabelos, puxando-os com força. Depois de repetir o ato algumas vezes, olhou com atenção o rosto molhado no espelho, como se fosse irracional existir um reflexo.
A iluminação era propositalmente precária: ele se sentia melhor assim. Alguma coisa deveria manter o caráter simples. Nem tudo que reluz é necessariamente bonito. Gostava da aparência gasta, do escuro e do cheiro de poeira - acreditava que era aconchegante. "Nada mais incômodo que elegância demais", pensava.
Respirou fundo, mantendo os olhos acinzentados nos opacos que o fitavam. A barba crescida, algumas marcas da idade, uns fios brancos na cabeça: sabia que não havia negócio a ser feito com o tempo - ele era o grande deus: não se tratava de um senhor dos justos, nem de um sábio, nem de um brincalhão; era a prova do poder em sua essência, sem compaixão e sem razão.
Abriu a boca, analisou os dentes. As sobrancelhas espessas chamaram sua atenção. "Droga, ela está chegando". Olhou para o relógio de pulso, que repousava sobre o assento de uma cadeira de madeira escura, trazida de um restaurante que não mais existe. Não teria tempo de trocar a roupa que vestia (um roupão comprido, velho, de listras marrons em fundo mais claro), nem de tomar seus remédios. Pensou em oferecer algum chocolate, mas não havia nada por ali que não fosse papel, móveis e mofo - e uma embalagem mediana, colorida, de algum presente inútil que recebera.
Escovava os dentes com fúria, ferindo a gengiva e o interior das bochechas. Gostava da sensação de ardência. O som de passos no corredor embalou as batidas na porta, que não tardaram a chegar. Olhou apreensivo para a maçaneta que, girando, produziu um estalo. Cuspiu tudo na pia, com desgosto. Dessa vez não se alegrou ao ver que a espuma que deslizava com o fluxo de água era rosada.
- Ô, desvairada! Ele é o chefe, merece o mínimo de educação. Não chega assim entrando... - Antoine puxou Agatha pelo braço, de leve, buscando um sinal de aprovação de Arthur que, por sua vez, parecia estar distante demais da realidade para se ocupar com um feito tão banal.
- Deixe-nos sozinhos.
- Arthur, teus olhos estão tão vermelhos, parece até que... - A voz do rapaz desapareceu assim que o homem a sua frente cruzou os braços e inclinou a cabeça para a direita, torcendo a boca para o outro lado. Nunca vira tal expressão, mas já sentira medo antes por muito menos. Recuou rapidamente e fechou a porta. Pensou em ficar ali e tentar ouvir a conversa, mas não desejava conhecer as conseqüências de tal infantilidade - ainda mais agora que estava lutando por um voto de confiança.
- Sente-se. - Apontou uma poltrona encapada com tecido salmão que ligeiramente dava um ar menos mórbido ao ambiente. Agatha sentia-se em um banheiro imundo que fora adaptado na tentativa de se tornar um escritório. Não pensou duas vezes antes de atender o pedido.
- Agora... - Disse ele, se acomodando em um aglomerado de almofadas fedorentas, que escondiam os rasgos de um colchonete. A diferença na altura dos dois ajudaria a garota a se soltar, visto que ela parecia ter alcançado certa autoridade ao ver o velho que destruira sua vida em um estado lastimável, jogado em trapos. - ... comece! Fique à vontade, não precisa correr.
- Hum... ok. - Esqueceu por um tempo do tanto que queria dizer a Arthur: xingá-lo, questioná-lo, ameaçá-lo... Ele parecia tão humano e fraco, tão pequeno. De repente, um erro da parte dele: uma risada baixa, mas maliciosa. Sua suposta fragilidade se dissolvera em um segundo, transformando-o num impostor da pior espécie aos olhos claros que o miravam. - Você é nojento! Sério... doente, doente! Um louco, um maníaco, um...
- Eu sei o que eu sou. Você não veio aqui me dizer isso.
- Pára! Eu quero falar, quero te fazer escutar tudo o que eu tenho vontade de dizer! Fiquei dias olhando para as paredes por sua culpa, o mínimo que mereço é...
- Pelo visto não aprendeu nada.
- E o que eu aprenderia? Que conversa de louco, você sempre...
- Imagem, imagem, imagem... Como é possível? - Ele levantou os braços e virou os olhos para cima por uns segundos. - Aprende a ver além do físico, menina. Horas e horas se vendo no espelho e nada... - Ela parecia não entender nada. - Eu quero te ver se odiando, não suportando mais se ver o tempo todo! Detesto te ver arrumar os cabelos de dez em dez segundos. Arranque-os, coloca tudo na boca e engole!
- Eu guardo meu desprezo para ti.
- Não, mocinha, não é assim que funciona. Você tem que se livrar dessa cegueira a que todos estão acostumados! O poder da visão do real é um privilégio para poucos...
- Quanto blablablá! Você fala como se fosse Deus, fala para eu me desligar das aparências mas não passa de um egocêntrico... você é uma farsa, uma mentira!
- A mentira pelo qual você vai lutar um dia.
Agatha não respondeu. Observou Arthur tossir compulsivamente - os olhos cada vez mais vermelhos, a mão batendo no peito, como se o ar lhe faltasse. Seis minutos de esforço, lutando contra a doença, foram suficientes para deixá-lo caído sobre as almofadas. O corpo perdia os movimentos com o passar dos segundos. A menina não se mostrou muito assustada. Pelo contrário: deixou escorregar para os dedos um estilete que trouxera escondido na manga.
A iluminação era propositalmente precária: ele se sentia melhor assim. Alguma coisa deveria manter o caráter simples. Nem tudo que reluz é necessariamente bonito. Gostava da aparência gasta, do escuro e do cheiro de poeira - acreditava que era aconchegante. "Nada mais incômodo que elegância demais", pensava.
Respirou fundo, mantendo os olhos acinzentados nos opacos que o fitavam. A barba crescida, algumas marcas da idade, uns fios brancos na cabeça: sabia que não havia negócio a ser feito com o tempo - ele era o grande deus: não se tratava de um senhor dos justos, nem de um sábio, nem de um brincalhão; era a prova do poder em sua essência, sem compaixão e sem razão.
Abriu a boca, analisou os dentes. As sobrancelhas espessas chamaram sua atenção. "Droga, ela está chegando". Olhou para o relógio de pulso, que repousava sobre o assento de uma cadeira de madeira escura, trazida de um restaurante que não mais existe. Não teria tempo de trocar a roupa que vestia (um roupão comprido, velho, de listras marrons em fundo mais claro), nem de tomar seus remédios. Pensou em oferecer algum chocolate, mas não havia nada por ali que não fosse papel, móveis e mofo - e uma embalagem mediana, colorida, de algum presente inútil que recebera.
Escovava os dentes com fúria, ferindo a gengiva e o interior das bochechas. Gostava da sensação de ardência. O som de passos no corredor embalou as batidas na porta, que não tardaram a chegar. Olhou apreensivo para a maçaneta que, girando, produziu um estalo. Cuspiu tudo na pia, com desgosto. Dessa vez não se alegrou ao ver que a espuma que deslizava com o fluxo de água era rosada.
- Ô, desvairada! Ele é o chefe, merece o mínimo de educação. Não chega assim entrando... - Antoine puxou Agatha pelo braço, de leve, buscando um sinal de aprovação de Arthur que, por sua vez, parecia estar distante demais da realidade para se ocupar com um feito tão banal.
- Deixe-nos sozinhos.
- Arthur, teus olhos estão tão vermelhos, parece até que... - A voz do rapaz desapareceu assim que o homem a sua frente cruzou os braços e inclinou a cabeça para a direita, torcendo a boca para o outro lado. Nunca vira tal expressão, mas já sentira medo antes por muito menos. Recuou rapidamente e fechou a porta. Pensou em ficar ali e tentar ouvir a conversa, mas não desejava conhecer as conseqüências de tal infantilidade - ainda mais agora que estava lutando por um voto de confiança.
- Sente-se. - Apontou uma poltrona encapada com tecido salmão que ligeiramente dava um ar menos mórbido ao ambiente. Agatha sentia-se em um banheiro imundo que fora adaptado na tentativa de se tornar um escritório. Não pensou duas vezes antes de atender o pedido.
- Agora... - Disse ele, se acomodando em um aglomerado de almofadas fedorentas, que escondiam os rasgos de um colchonete. A diferença na altura dos dois ajudaria a garota a se soltar, visto que ela parecia ter alcançado certa autoridade ao ver o velho que destruira sua vida em um estado lastimável, jogado em trapos. - ... comece! Fique à vontade, não precisa correr.
- Hum... ok. - Esqueceu por um tempo do tanto que queria dizer a Arthur: xingá-lo, questioná-lo, ameaçá-lo... Ele parecia tão humano e fraco, tão pequeno. De repente, um erro da parte dele: uma risada baixa, mas maliciosa. Sua suposta fragilidade se dissolvera em um segundo, transformando-o num impostor da pior espécie aos olhos claros que o miravam. - Você é nojento! Sério... doente, doente! Um louco, um maníaco, um...
- Eu sei o que eu sou. Você não veio aqui me dizer isso.
- Pára! Eu quero falar, quero te fazer escutar tudo o que eu tenho vontade de dizer! Fiquei dias olhando para as paredes por sua culpa, o mínimo que mereço é...
- Pelo visto não aprendeu nada.
- E o que eu aprenderia? Que conversa de louco, você sempre...
- Imagem, imagem, imagem... Como é possível? - Ele levantou os braços e virou os olhos para cima por uns segundos. - Aprende a ver além do físico, menina. Horas e horas se vendo no espelho e nada... - Ela parecia não entender nada. - Eu quero te ver se odiando, não suportando mais se ver o tempo todo! Detesto te ver arrumar os cabelos de dez em dez segundos. Arranque-os, coloca tudo na boca e engole!
- Eu guardo meu desprezo para ti.
- Não, mocinha, não é assim que funciona. Você tem que se livrar dessa cegueira a que todos estão acostumados! O poder da visão do real é um privilégio para poucos...
- Quanto blablablá! Você fala como se fosse Deus, fala para eu me desligar das aparências mas não passa de um egocêntrico... você é uma farsa, uma mentira!
- A mentira pelo qual você vai lutar um dia.
Agatha não respondeu. Observou Arthur tossir compulsivamente - os olhos cada vez mais vermelhos, a mão batendo no peito, como se o ar lhe faltasse. Seis minutos de esforço, lutando contra a doença, foram suficientes para deixá-lo caído sobre as almofadas. O corpo perdia os movimentos com o passar dos segundos. A menina não se mostrou muito assustada. Pelo contrário: deixou escorregar para os dedos um estilete que trouxera escondido na manga.
2 comentários:
noooooooooossa
que legal que legal!
Ivy, passei aqui pq eu sou mó curioso e queria saber o resto da história mas agora to sem inspiração pra escrever-lhe como eu gostaria. Mas ahnnnn como eu adoro teus comentários, e eu tinha mais umas coisas pra te dizer mas perdi o fio da meada. E como eu adoro tudo em tu :D
beeejo.
Respondendo ao teu comentário no meu blog: As vezes é prciso dar uma esquentada nas coisas...se é que me entende, né...uhahuahuauhauhahuuha
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