Abriu a porta com violência desnecessária e pisoteou apressada o tapete felpudo próximo à entrada. Os coturnos molhados, o guarda-chuva quebrado em mãos e a capa de chuva amarela encobrindo um grande volume nas costas da moça.
Mal chegara e já causou a polêmica silenciosa de maior proporção na semana: vinham de todos os lados os olhares barbarizados. Até da mulher gorda - esposa do barbeiro - que trazia copinhos e café em uma bandeja metalizada. A mulher, inclusive, interrompeu seus passos mecânicos para prestar atenção na jovem que entrara.
- Em que posso ajudá-la? - Enfim, o barbeiro entendeu que era sua responsabilidade explicar a situação aos presentes. Seu bigode espesso e grisalho muito bem aparado com uma mecha mais escura bem ao centro.
- Eu vim aparar as asas. Eu preciso apará-las... - Respondeu a jovem, emburrada. Continuava parada junto à porta, sem ousar qualquer movimento. A capa amarela parecia cobrir uma mochila gigante, larga, de forma caótica.
Dois homens estavam sentados nas cadeiras de couro preto, deixando de ler o jornal em mãos para se ocupar com a novidade em pessoa. Outros três sujeitos aguardavam sentados em móveis gastos de cor senil, um deles com o radinho de pilha próximo ao ouvido esquerdo.
- Pois não?! - O barbeiro soltou a navalha sobre o balcão e limpou as mãos em uma pequena toalha que um dia fora branca, interessado e confuso a respeito da história que a moça trazia.
Ela os poupou de mais suspense e abriu os botões da capa plástica. Puxou-a para o lado com força, revelando enormes asas de penas brancas fosforescentes. Já estava acostumada a ver olhos arregalados, e nada foi acrescentado a sua impaciência.
- Mas... mas... quê isso? Onde conseguiu isso, minha cara? - O barbeiro falava rápido, cuspindo sobre o jaleco companheiro. Sua mulher ainda estava parada no meio do cômodo, com as bochechas rosadas combinando com o batom. O corte de cabelo ultrapassado a lembrava constantemente de que era casada com um barbeiro e que, em seu destino, não constava uma capa de revista.
- Eu não consegui isso. Isso apareceu, ok? Aconteceu. É isso. - Explicou estressada, esperando que seus gestos dessem mais confiabilidade ao seu relato. Porém, depois de um tempo de diálogo reticente, percebeu que de nada adiantava tentar ser entendida. - Olha, cresceram muito nos últimos tempos, e não quero que rasguem mais ainda minhas roupas. É inverno, sabe? - Ninguém piscava. - É inverno, e chove mais, e as penas ficam meio podres se molham muito. É ruim de manter assim, fica complicado no dia-a-dia... Eu só preciso que o senhor apare um pouco. - A mulher gorda olhou para seu reflexo na bandeja com a esperança de não ver nenhuma estrutura com penas atrás de sua cabeça. - Nem precisa ficar perfeito, é só cortar um pouco.
O homem hesitou em responder. Pela primeira vez na vida talvez, direcionou à esposa um olhar de súplica, pedindo que ela desse seu parecer. Eis que a gorda não falou nada, e retornou ao marido um olhar assustado. Ele achou que prudente seria não bancar o teimoso naquela situação. Mas nada de palavras, até então.
- Tá, e aí? - A moça suspirou. - Olha, eu realmente preciso de ajuda. Se eu pudesse fazer isso sozinha, eu juro que faria, mas olha só... - Ela começou a girar no mesmo eixo, como se tentasse agarrar as asas presas em suas costas. - Viu, eu pareço um cachorro correndo atrás do próprio rabo! - E pela primeira vez ela riu, tentando compreender o quanto sua situação era estranha para aqueles indivíduos.
- Resolve logo isso! - Gritou a esposa do barbeiro nervosa. No fundo, queria dizer "Anda, tira essa aberração daqui!". Achou que a moça tinha mesmo pacto com o capeta e pensou que o melhor seria não provocá-la. Muito religiosa, só queria que a jovem com asas estivesse longe dali e jamais retornasse.
O barbeiro nem olhou para a esposa. Fez um aceno com a cabeça para um dos homens sentados nas cadeiras pretas e este levantou imediatamente, embaralhando o jornal antes de deixá-lo sobre uma mesa baixa recheada de panfletos e cartões de marcenarias. Fingiu um sorriso simpático e se encostou na parede, como se estivesse ansioso para presenciar a cena que viria a seguir.
- Senta. - O barbeiro estendeu as mãos para a moça, apontando a cadeira vazia. Ela olhou para ele e para a cadeira seguidas vezes antes de dar o primeiro passo. E, quando se sentou, o fez com leveza, agradecida. A mulher gorda apertando o terço na mão desocupada. Os homens impressionados, pensando em como contariam a situação aos amigos de forma que eles acreditassem. A moça aliviada, com os cabelos molhados emoldurando seu rosto cansado e alguns quilogramas a menos se espalhando pelo chão.
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