domingo, 17 de janeiro de 2010

SL (parte 3)

Cabelos castanhos despenteados, presos com uma fita de cetim verde. Chiclete sabor tutti-frutti. Fones de ouvido. Olhos grandes e expressivos. Do tipo que atravessa a rua sem olhar para os lados, se baseando apenas nas "vibrações do chão". Camiseta cinza com estampa do Mickey. Saia rodada e joelhos machucados.


Gritei "Mary" e ela permaneceu parada na fila do caixa. E eu disse "Oh, Susie" em volume mais baixo, o que provocou um sorriso breve naquele rosto quase angelical. Ela só se rendeu quando ouviu "Hey, Jude" - resistiu a "Dana O'Hara" e "Jamie", mas só voltou-se para mim depois que eu falei em "Jude". Estranho, muito estranho: ninguém é indiferente a "Bette Davies".


Trocamos poucas palavras. Ela estava esperando para pagar um pacotinho com sementes. E refrigerante sabor limão. Me contou sobre sua idéia repentina de plantar flores, enfeitar sua janela. Não parecia ser do tipo que come alface e ama os animais. Me deixou em silêncio, observando novamente suas costas. E eu já não sabia a qual música teria de recorrer para ganhar sua atenção novamente.


"Samantha", "Julia", "Caroline", "Sara", "Polly", "Helena"... tudo em vão. De repente, ela se virou. Sobrancelha erguida. Mascava furiosamente o chiclete. Tudo isso faria sentido se a reação anterior não tivesse existido. Eu disse "Jude?!" com um sorriso nervoso, mas ela olhou para baixo e sacudiu a cabeça num sinal de "não". Parecia irritada com o meu não-entendimento dos fatos, e eu já estava me incomodando com aquela pressão para que eu decifrasse a mensagem.


Cabelos castanhos despenteados. Camisa xadrez verde, cinza e azul-marinho. Chiclete de menta. Chave pendurada no pescoço. Olhos pequenos e claros. Calça comprida e tênis com merda. Do tipo que adora cachorros, mas não sabe controlá-los no parque - e sempre arranja confusão com famílias que fazem piquenique.


Eu disse "Eu sei que fui eu quem começou com tudo isso, mas eu não entendo.", encarando os olhos grandes com os meus pequenos. Ela pegou da cesta que eu carregava a lata de extrato de tomate e o pacote de massa, e apertou cada um deles contra suas bochechas, num bizarro gesto amoroso.


Pagamos as compras e fomos cozinhar massa com molho e plantar flores. O que combinava com o "Hey" de "Hey, Jude" era o "Hey" de "Hey, Paul" e, em função disso, decidimos nos chamar por esses nomes fictícios e deixar de lado nossas verdadeiras identidades.


Acabei limpando a merda dos tênis na grama de um dos vizinhos de Jude, ainda no caminho para sua casa. Ouvi a história dos machucados dos joelhos dela e pensei em presenteá-la com joelheiras quando tivesse oportunidade. Só me enganei quando inferi seu gosto por alface: ela tinha uma plantação delas. 



 

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