A viagem ainda demoraria longas treze horas, contando todo o percurso que Sherobi faria após o trem chegar na estação. O céu colorido pelo sol que se recolhia. Os olhos caídos da moça, que encostara o rosto no vidro da janela, não refletiam nada: nenhuma emoção, nenhum sinal de alegria ou dor. Ela ajeitou o cachecol, apertando-o em torno de seu pescoço branco e fino. Não estava contente com seu estado, com o rumo que as coisas tomaram, mas sentia-se satisfeita de não estar do outro lado das vidraças: o frio era tamanho que não se via ninguém pelas ruas próximas aos trilhos. Nenhuma tenda com nozes e castanhas à venda, nenhum esquilo pelo caminho, nenhum barulho que não fosse o do trem. Mesmo os passageiros estavam silenciosos. Nenhum rádio ligado, nenhuma voz, nem assobio, nem espirro.
Aos poucos, uma camada de névoa delicada começou a se cristalizar sobre a barreira transparente que dividia a cabine de Sherobi do mundo real. Não estava mais sozinha: um homem de aparência rude, com trajes marrons, que provavelmente não era da capital, sentou ao seu lado, fazendo-a encolher os braços. A mochila que estava em seu colo foi acomodada sob o assento do banco, que se revelava uma espécie de baú. Não gostou nem desgostou da companhia; sua indiferença ocupava toda a sua atenção.
O homem esticou a mão esquerda num gesto bruto e tirou do bolso da jaqueta de couro um pequeno saco de amendoins. Mastigou ruidosamente, enquanto apoiava os pés pesados sobre o banco à sua frente, onde ninguém havia sentado. A cabine de número 28 foi rapidamente preenchida com o cheiro de terra molhada que vinha das botinas do homem. A garota se incomodou com o espaço que sobrara para se escorar no encosto almofadado. Deitou a cabeça para trás e inclinou-se para ver o sujeito. Fingia estar mascando um chiclete, como se essa mania fosse capaz de intimidar as pessoas.
“Ei, você! Para onde está indo?” – Perguntou ao homem. Ele parecia ter cinqüenta, quase sessenta anos, ainda que estivesse corado e tivesse porte um tanto forte. “Vai parar na estrada de Michigami ou pretende atravessar a fronteira?”. “Como?” – Disse ele, se engasgando com o susto que levara. “O que quer saber, pirralha?”. “Oras... pirralha... há tempos não escuto isso. Saudade. Você não é mesmo da capital, como eu suspeitava.” – suspirou Sherobi, curvando-se até onde estava sua mochila. Abriu o zíper, puxou um cigarro da carteira e retomou sua postura inicial. Deixou-se cair um pouco pelo banco, de forma a privar seus olhos da visão – ou, pelo menos, da luz – que vinha da janela. Acomodou os pés no banco da frente, como o homem fizera. Este, por sua vez, estava em silêncio. Insistia numa careta rígida, como se isso o afastasse da idéia de que existia uma jovem ao seu lado, insistindo num diálogo.
“Vamos, diga o que quer. Não costumo conversar com estranhos.” – Ele disse, num tom ríspido. “Então foi isso o que sua vasta experiência de vida lhe ensinou? A não falar com estranhos?” – Ela perguntou, numa ironia que fugia da malícia da brincadeira. “Eu quero fogo, só isso. Fogo.”. “Você deveria respeitar as regras. Não é permitido fumar neste local, pirralha.” – Advertiu o velho. “Hum... outra lição de moral. Isso é uma ameaça?” – Perguntou a garota, apertando o cigarro com os lábios enquanto tateava as costas de seu casaco à procura do capuz. Vestiu-o, deixando de fora a franja e algumas mechas de seu cabelo escuro. Os olhos claros voltaram a fitar o sujeito ao seu lado. “Acaba de uma vez com isso. Me passa o fogo e estamos quites.” – Sherobi falou, como se a conversa estivesse sugando suas energias. “Quites? Eu te devo alguma coisa, garota?” – Grunhiu o velho, tirando do bolso da calça um isqueiro rústico, que parecia valer uma grande quantia. “Garota... ok, agora melhorou. Não é porque eu não me apresentei que eu sou uma estranha. Quer dizer, você já deveria me conhecer.” – Ela respondeu, inclinando-se para tocar a ponta do cigarro na pequena chama que se projetava aos olhos do homem.
“Como eu deveria te chamar?” – Admirou-se o velho, olhando com ternura por um segundo para a moça. – “Não sei porque estou te tratando bem, mas não se acostume. Você queria fogo, eu lhe dei. Agora seja breve com suas palavras e não estrague minha viagem.” – Disse ele, em voz baixa e firme. Olhava para a parede a sua frente, a divisória das cabines, feita com o mesmo material do assoalho. “Fogo... fogo é proteção. Eu pedi proteção. E sua viagem não significa nada, realmente nada. É insignificante, se compararmos o porquê de estarmos aqui...” – Lamentou ela, escondida pela sombra que o capuz projetava em sua face. “Sabe, você está certo. Nós somos estranhos, e nunca vamos nos dar bem. Eu não tenho vontade de te tratar bem.” – Num salto, ela se levantou e puxou as alças da mochila e da pequena mala que alojara numa prateleira superior ao banco. Parecia estar prestes a chorar, ainda que a expressão no seu rosto fosse de raiva.
“Espera, garota, o que está fazendo? O que está dizendo?” – Perguntou ele alarmado, equivocado com os insultos da jovem. - “Para onde está indo?”. “Para longe de você. Sabe, pensei em te seguir por Michigami, pensei em pedir para ficar na sua casa, conhecer sua esposa – se é que tem uma. Pensei em fazer parte da sua vida, mas agora eu não vejo o que me levou a vir até aqui. Estraguei a minha viagem e a sua também.” – Resmungou ela, evitando olhar o velho. Ele abrira os braços, impedindo que ela passasse ou chegasse até a porta da cabine. “O que você quer? Não vai me trancar aqui, seu velho!” – Ela berrou, voltando-se contra o homem – que imobilizou seus braços e empurrou-a no banco à sua frente.
Ao contrário do que ele esperava, ela encolheu pernas e braços e colocou a cabeça sobre as mãos. Era muito magra – magra e branca. Vestia uma saia comprida, o casaco de moletom cinza e coturnos surrados. Poderia ser confundida facilmente com qualquer drogada, menor infratora ou coisa que o valha, pois o aspecto delicado contradizia a idéia de que havia inocência naquele corpo.
O homem olhou para os lados, sem saber o que fazer. “Droga, pirralha. O que te fiz? A qualquer momento um guarda vai entrar por essa porta e te ver aí, soluçando. O que eu digo? Vão achar que eu tentei te estuprar ou coisa parecida, olha só a minha imagem!” – O velho ficou falando sozinho, perdido nas próprias idéias. Tentava entreter a garota a sua frente, não mais preocupado em se mostrar frio e intolerante, mas cuidadoso com o que suas palavras poderiam vir a causar.
“Quer um copo d’água?” – Ele perguntou, transcorridos alguns minutos. “Não.” – Sherobi disse, mais calma. Abaixou as mãos, apertando os joelhos contra seu corpo. Olhou para o chão e depois para o sujeito a sua frente. “Desculpe o transtorno. Lembrei que eu ainda não me apresentei. Você não me conhece, mas eu sou sua filha.”
Aos poucos, uma camada de névoa delicada começou a se cristalizar sobre a barreira transparente que dividia a cabine de Sherobi do mundo real. Não estava mais sozinha: um homem de aparência rude, com trajes marrons, que provavelmente não era da capital, sentou ao seu lado, fazendo-a encolher os braços. A mochila que estava em seu colo foi acomodada sob o assento do banco, que se revelava uma espécie de baú. Não gostou nem desgostou da companhia; sua indiferença ocupava toda a sua atenção.
O homem esticou a mão esquerda num gesto bruto e tirou do bolso da jaqueta de couro um pequeno saco de amendoins. Mastigou ruidosamente, enquanto apoiava os pés pesados sobre o banco à sua frente, onde ninguém havia sentado. A cabine de número 28 foi rapidamente preenchida com o cheiro de terra molhada que vinha das botinas do homem. A garota se incomodou com o espaço que sobrara para se escorar no encosto almofadado. Deitou a cabeça para trás e inclinou-se para ver o sujeito. Fingia estar mascando um chiclete, como se essa mania fosse capaz de intimidar as pessoas.
“Ei, você! Para onde está indo?” – Perguntou ao homem. Ele parecia ter cinqüenta, quase sessenta anos, ainda que estivesse corado e tivesse porte um tanto forte. “Vai parar na estrada de Michigami ou pretende atravessar a fronteira?”. “Como?” – Disse ele, se engasgando com o susto que levara. “O que quer saber, pirralha?”. “Oras... pirralha... há tempos não escuto isso. Saudade. Você não é mesmo da capital, como eu suspeitava.” – suspirou Sherobi, curvando-se até onde estava sua mochila. Abriu o zíper, puxou um cigarro da carteira e retomou sua postura inicial. Deixou-se cair um pouco pelo banco, de forma a privar seus olhos da visão – ou, pelo menos, da luz – que vinha da janela. Acomodou os pés no banco da frente, como o homem fizera. Este, por sua vez, estava em silêncio. Insistia numa careta rígida, como se isso o afastasse da idéia de que existia uma jovem ao seu lado, insistindo num diálogo.
“Vamos, diga o que quer. Não costumo conversar com estranhos.” – Ele disse, num tom ríspido. “Então foi isso o que sua vasta experiência de vida lhe ensinou? A não falar com estranhos?” – Ela perguntou, numa ironia que fugia da malícia da brincadeira. “Eu quero fogo, só isso. Fogo.”. “Você deveria respeitar as regras. Não é permitido fumar neste local, pirralha.” – Advertiu o velho. “Hum... outra lição de moral. Isso é uma ameaça?” – Perguntou a garota, apertando o cigarro com os lábios enquanto tateava as costas de seu casaco à procura do capuz. Vestiu-o, deixando de fora a franja e algumas mechas de seu cabelo escuro. Os olhos claros voltaram a fitar o sujeito ao seu lado. “Acaba de uma vez com isso. Me passa o fogo e estamos quites.” – Sherobi falou, como se a conversa estivesse sugando suas energias. “Quites? Eu te devo alguma coisa, garota?” – Grunhiu o velho, tirando do bolso da calça um isqueiro rústico, que parecia valer uma grande quantia. “Garota... ok, agora melhorou. Não é porque eu não me apresentei que eu sou uma estranha. Quer dizer, você já deveria me conhecer.” – Ela respondeu, inclinando-se para tocar a ponta do cigarro na pequena chama que se projetava aos olhos do homem.
“Como eu deveria te chamar?” – Admirou-se o velho, olhando com ternura por um segundo para a moça. – “Não sei porque estou te tratando bem, mas não se acostume. Você queria fogo, eu lhe dei. Agora seja breve com suas palavras e não estrague minha viagem.” – Disse ele, em voz baixa e firme. Olhava para a parede a sua frente, a divisória das cabines, feita com o mesmo material do assoalho. “Fogo... fogo é proteção. Eu pedi proteção. E sua viagem não significa nada, realmente nada. É insignificante, se compararmos o porquê de estarmos aqui...” – Lamentou ela, escondida pela sombra que o capuz projetava em sua face. “Sabe, você está certo. Nós somos estranhos, e nunca vamos nos dar bem. Eu não tenho vontade de te tratar bem.” – Num salto, ela se levantou e puxou as alças da mochila e da pequena mala que alojara numa prateleira superior ao banco. Parecia estar prestes a chorar, ainda que a expressão no seu rosto fosse de raiva.
“Espera, garota, o que está fazendo? O que está dizendo?” – Perguntou ele alarmado, equivocado com os insultos da jovem. - “Para onde está indo?”. “Para longe de você. Sabe, pensei em te seguir por Michigami, pensei em pedir para ficar na sua casa, conhecer sua esposa – se é que tem uma. Pensei em fazer parte da sua vida, mas agora eu não vejo o que me levou a vir até aqui. Estraguei a minha viagem e a sua também.” – Resmungou ela, evitando olhar o velho. Ele abrira os braços, impedindo que ela passasse ou chegasse até a porta da cabine. “O que você quer? Não vai me trancar aqui, seu velho!” – Ela berrou, voltando-se contra o homem – que imobilizou seus braços e empurrou-a no banco à sua frente.
Ao contrário do que ele esperava, ela encolheu pernas e braços e colocou a cabeça sobre as mãos. Era muito magra – magra e branca. Vestia uma saia comprida, o casaco de moletom cinza e coturnos surrados. Poderia ser confundida facilmente com qualquer drogada, menor infratora ou coisa que o valha, pois o aspecto delicado contradizia a idéia de que havia inocência naquele corpo.
O homem olhou para os lados, sem saber o que fazer. “Droga, pirralha. O que te fiz? A qualquer momento um guarda vai entrar por essa porta e te ver aí, soluçando. O que eu digo? Vão achar que eu tentei te estuprar ou coisa parecida, olha só a minha imagem!” – O velho ficou falando sozinho, perdido nas próprias idéias. Tentava entreter a garota a sua frente, não mais preocupado em se mostrar frio e intolerante, mas cuidadoso com o que suas palavras poderiam vir a causar.
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