sexta-feira, 18 de maio de 2007

Plural de singulares.

Freud diz - mais ou menos assim - que, a princípio, a base dos nossos medos, o modo como agiremos em frente a sociedade, o modo como lidaremos com nossos desejos... enfim, tudo isso já é predefinido na infância. Como me disse um alguém outro dia - embora fosse outro assunto - e, de fato, é verdade: as crianças não têm vergonha. No fundo elas não deveriam nem ter medo - visto que a vergonha provém deste - e sabe-se que tudo isso é imposto pelos pais e pelo mundo que as rodeia. Elas vão teimar em puxar o rabo do cachorro até que ele se revolte e morda alguma mãozinha indefesa.
O que acontece é que a maior parte da repressão que os 'adultos' acaba se voltando como culpa que, com o passar do tempo e o desenvolvimento da pessoa, só se acumula de uma forma desentendida. Você aprende que fazer tal coisa é proibido, é feio, que não pode. A partir do momento que algo te é negado ou você simplesmente é privado de algum prazer sem entender porquê - o que há de mal - tudo o que você herda, juntamente com algumas lembranças desprazerosas, é uma malinha cheia de preocupações que, ainda que não te atordoem todo o tempo, vão interferir no resultado final.

Não se trata - só - de medo de escuro, insegurança de uma maneira geral: é a personalidade que vai sendo formada através de experiências da qual muitas vezes não obtemos conclusão alguma. Você sabe que é proibido, mas sabe também que é o que deseja. Vai desafiar as palavras para ver até onde essa teoria não se faz prática? Vai tentar ultrapassar as barreiras entre você e seu 'sonho'? Grande parte das pessoas se culpa por não compreender o que se passa, pois sabem o quão 'erradas' estão em insistir num desejo impuro. Ou não insistem - apenas vivem na amargura de não tentar. A vida rotineira pode ser realmente fácil quando não temos lembranças.

Existem aqueles que, de alguma forma, buscam explicação no passado, buscam contrariar o inevitável ou, ao menos, tentar substituir sonhos antigos por novas realizações - mas nem sempre conseguem. O comum é se ocupar com outros pensamentos, outras ações que condizem com o que é 'certo', com o que é aceito pela maioria. É como se o capitalismo, de repente, existisse em nosso organismo também, sabe. O importante é o sucesso, a velha história dos funs justificam os meios. Só que nem sempre é lembrado que tais fins são apenas o começo, pois não saciarão a vontade que o tempo só agravou.

Num livro do Paulo Coelho, Veronika decide morrer, existem várias frases para descrever os loucos. Uma das que eu mais gosto diz que "louco é quem vive em seu próprio mundo" e, de fato, isso me lembra bastante alguns personagens esquisofrênicos de outros lugares - não exatamente desse livro. No fundo a realidade é isso, totalmente individual. As pessoas são reprimidas, medrosas, sentem culpa por desejarem o diferente, são preconceituosas até com elas mesmas. Ser único, ímpar, diferente ou 'normal' é de uma enorme responsabilidade se formos pensar que temos não só que suprir nossas necessidades pessoais como também apresentar uma boa imagem àqueles que nos rodeiam.

Eu sempre gostei dessa explicação freudiana, que justifica nossas características atuais por ações passadas, de quando não tínhamos total consciência sobre nossos atos. Éramos tão ativos e descarados. Por isso eu gosto de crianças diferentes das que correm e berram o tempo todo: elas, certamente, têm algum problema. Pessoas sérias tendem a ser até mais verdadeiras, pois se fecham com tanta intesidade que não necessitam de nenhuma máscara. Talvez, por isso, sejam mais maduras ou já tenham aprendido a superar ou consertar erros do tal pretérito. Mas isso não é uma afirmação de que são melhores.

Assumir uma personalidade, uma cara que não é sua exige tanta coragem e dedicação que, quando se torna uma habilidade, é algo realmente admirável. Sim, é verdade que necessitamos de uma pausa, de um momento totalmente verdadeiro; parar de brincar de mentir. Aí sim: é preciso muito mais coragem. Enfrentar tudo aquilo que foi adiado, ouvir as velhas e novas críticas, adquirir novos traumas, se aventurar pelo famoso reconhecimento da sociedade, que deve te julgar como 'um dos deles' ou 'um perdido por aí' - um alguém que, segundo eles, não está certo da cabeça, não sabe o que é o bom da vida, não pode ser normal... Quem são eles? Eu, você, todo mundo. Qualquer pessoa capaz de fazer um julgamento, ainda que não exista um porquê para isso.

Vivemos disso. Quando nascemos somos ensinados - quase adestrados - a seguir um padrão, a sentir aflição e vergonha quando não alcançamos os resultados esperados, a sermos simplesmente educados com o próximo e mantermos o velho caráter falso com ele. Encontrar um vizinho no elevador, dizer 'oi, tudo bem?!', não ouvir sua resposta e ignorá-lo o resto do tempo, cada um olhando para uma direção diferente da incrível máquina cor-de-creme que é a cabine de um elevador.

Ser programado para aceitar a imposição de idéias é algo realmente estranho. Faz sentido, a partir do momento em que vivemos sob a mesma Constituição e devemos respeitar a natureza em todas as suas formas e essa coisa toda. O que não deixa de ser uma contradição: para ser respeitado, você deve ser aceito. Para isso acontecer, damos a mão, o braço, sorrisos amarelos, vestimos roupas não tão frescas no verão e somos obrigados a aturar todo o tipo de fofoca e injustiça, como se tudo fosse simplesmente 'normal'. Normal...

Porém, se formos todos pensar que cada um que nos dirige o olhar na rua também tem seus momentos de dúvida, de fraqueza, também não se sente satisfeito com o que vê no espelho, sente frio e vontade de ir à casa dos avós tomar chá e todas essas coisinhas dos 'prazeres' - a la Amélie Poulain - deixamos de nos sentir tão sozinhos e passamos a compreender que a deficiência está na maneira como as coisas são encaradas. Chegamos em um ponto onde a 'liberdade de expressão' é uma expressão banalizada, modismo. Não existe a tal da liberdade, a não ser dentro da nossa concepção - quando estamos sozinhos no quarto e ninguém pode questionar as caras abobadas que fazemos quando estamos absortos em nossos pensamentos. Fugir não adianta, não podemos viver num refúgio para sempre, fingindo que somos felizes por agirmos como a maioria.

Assumir a loucura faz parte do crescimento, é o caminho para a realização e a borracha necessária para reconstruir linhas tortas.


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