"Veja o sol dessa manhã tão cinza
A tempestade que chega é da cor dos teus olhos
Castanhos...
Então me abraça forte
E diz mais uma vez que já estamos
Distantes de tudo"
Espetou o dedo pela sexta vez naquela manhã de sol tímido. A agulha preguiçosa fazendo a linha se esconder e reaparecer pelo tecido gelado. Dessa vez, apenas abafou um gemido. Não saberia dizer se estava se acostumando com a dor ou se a incomodava o fato de se espetar sempre no mesmo lugar. Observava o sujeito dormindo por cima das lentes do óculos, ressabiada. Estava acostumada com seu ronco, mas era só ele começar a tossir que ela se assustava e mais uma vez escorregava a agulha no mesmo ponto do indicador. Ela não sabe o horário exato em que ele chegou em casa - ele, muito menos. O cheiro forte de bebida não deixava dúvidas de que a noite tinha sido longa. Ela não se importava com isso. Desejava apenas que ele acordasse inteiro para ela. De que vale o fim de semana sem boa companhia.
O sol de sábado nascia morno, espantando o frio da estação. Ela esfregava um pé no outro por debaixo do cobertor. As pernas macias de juventude. Terminou a costura e finalizou com um nó bem forte, segurando a linha com os lábios cerrados. Continuou a olhar para o cara que dormia esticado no sofá. A camisa para fora da calça, um pouco desabotoada. As meias e o calçado no chão. Levantou-se de imediato da poltrona e sentou-se próxima ao sujeito. Passou as mãos em seu rosto e deu-lhe um beijo demorado na testa.
- Vou preparar o café, querido.
Ele abriu os olhos confuso, procurando a origem da voz doce. Viu a moça se afastar do sofá, com a saia rodada moldando-se pelo vento. Sentiu uma forte pontada na sua cabeça, uma dor muito forte, que durou alguns segundos. Com os olhos fechados, tateou seu corpo. Abotoou a camisa e colocou a mão no bolso traseiro da calça, percebendo ali algum conteúdo. Encontrou um pequeno pedaço de papel amassado, com um número de telefone escrito em vermelho. Não se lembrava de ter conhecido alguém na noite passada. Mas isso já tinha virado rotina.
Ela trouxe a bandeja de prata com um bule de café e duas xícaras. Percebeu o papel na mão do noivo, mas não esboçou nenhuma surpresa. E não é que estivesse acostumada com a cena: de fato, parecia mais uma negação. Serviu o café, acrescentou dois cubinhos de açúcar e provou. Muito quente. Esperou que ele fizesse o mesmo, para então perguntar como tinha sido a noite com os amigos. Sem tom de cobrança, tudo da forma mais natural possível. Ele não disse muita coisa. Ela baixou os olhos e comentou que tinha costurado aquela camisa. Aquela camisa. Nunca tinha acreditado na história de marcas de batom no colarinho até lavar aquela camisa.
Ele bebeu o café, folheou o jornal, mas estava inquieto com a situação. Não era a primeira vez que se sentia constrangido ao perceber que ela ignorava o que estava acontecendo no relacionamento dos dois. Nunca tocaram no assunto, mas o chateava perceber que ela não se manifestava. Por mais que essa atitude passiva fosse melhor do que uma tempestade. Mas ele não sentia que ela se importava. E já estava vivendo a idéia de que poderia mesmo passar os anos desse jeito - enchendo a cara no bar, dormindo com estranhas e chegando em casa ao amanhecer. Foi quando ela se levantou do sofá de imediato, esboçando um sorriso inocente.
- Eu estou grávida.
O café se espalhou por todo lado. Ele a abraçou como há tempos não fazia. E a alegria era sincera. Mais tarde, rasgou o papel que tinha encontrado em seu bolso e jurou para si mesmo nunca mais repetir a noite anterior. Passados os nove meses, descobriu que não era seu filho.