Pegar um trem ou qualquer coisa que o valha com destino a qualquer lugar num dia chuvoso ou cinza ou simplesmente ventoso e reticente. Sentar num banco vazio, no assento próximo a janela. Tirar os fones de ouvido do bolso e começar a escutar a primeira música de uma lista infinita. E assim ser, por horas infindáveis.
Contrariar a vontade do mundo escorregando o vidro da janela de forma que o ar congelante entre. "De que adianta ser inverno se não sinto frio?!". Outrora, os dedos agitariam-se a bater nos joelhos ou a boca revelaria a canção; mas certos dias merecem mão no bolso e lábios cerrados. Olhos expressivos, mentindo estar sonolentos.
O clima é quebrado por um estranho a sentar-se no assento que sobrou. "O clima é sempre quebrado.", como se a solidão atraísse o barulho. Segundos depois, a paisagem re-ocupa o papel de protagonista. O conforto de ver mudanças sutis é incomparável, tão diferente das pessoas e suas opiniões.
Trocar a música alegre por uma mais monótona; encontrar um papel amassado no bolso. Abrir o papel e desejar não tê-lo visto. Suspirar mentalmente e olhar ao redor. Aparentemente, tudo está sempre estável. Sempre estável. E essa certeza é a maior prova do quão incertas são as coisas. "Tudo muda, ora ou outra. A agonia vem de não saber quando será a próxima vez.".
Olhar uma última vez para o papel e deixá-lo voltar para seu esconderijo: estratégia dramática e inútil de fugir das palavras. Deveria colocar no lixo todos os registros, todas as lembranças. O problema é que a memória deforma as mensagens, transforma sonhos em medo, faz a interpretação mudar de acordo com as emoções sentidas.
Sentir o corpo afundando no banco, os ossos ganhando peso, as forças se derretando. Não ter vontade alguma. Deixar a cabeça pesar sobre os ombros e fixar os olhos no horizonte. Pensamentos inquietos, silêncio e respiração arrastada. Envolver-se com o vento, deixar que gele as narinas; segurar com firmeza as mangas do casaco, escondendo as mãos.
Aumentar o volume da música, deixar as pálpebras pesarem e esquecer o mundo. Colocar um pé sobre o outro, enroscando os cadarços desamarrados. Não se importar com os fios de cabelo bagunçando-se diante dos olhos, com a boca seca, com as bochechas coradas. Não estar. E não ver o trem chocar-se com outro, que estava parado na estação. O sangue morno sobre o rosto e o papel seguro, apertado na mão fechada.
3 comentários:
"ou qualquer coisa que o valha". Como ativa a memória e me reconforta toda vez que eu leio isso em algum lugar.
Nesses dias de inverno poucas coisas me trazem mais alegrias do que ouvir musicas no lado ensolarado do onibus.
Sinto uma vontade imensa de conversar contigo, pena que não estás aqui.
Enfim, see you later.
meus dias de frio se resumem à apego à cama quentinha e preguiça de ir tomar banho seis horas da manhã.
achei que a personagem fosse interagir com o estranho :|
rsrs
gostei que tem visitado o abracoseapernas.
beijos.
Demais esse texto!
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